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Diploma de mérito

Aquele que veio para vencer!

Niva Miguel

  • 13/12/17
  • 15:00
  • Atualizado há 328 semanas

Vicente de Melo é o vencedor do Diploma de Mérito Zumbi dos Palmares de 2017, prêmio outorgado pelo Zimbauê, Instituto do Negro de Assis, para personalidades negras que contribuem com o seu trabalho para o fim do preconceito, da desigualdade e do racismo em Assis e se mantém firme nessa luta para acabar, de vez, com tudo isso. O prêmio será entregue em sessão solene, em breve, na Câmara Municipal de Assis.

Naquele sábado, 29 de maio de 1943, como era de costume na casa do casal de Melo, lá em Itapuí, um lugar pequeno perto de Jaú, tudo corria na mais perfeita ordem e com uma expectativa no ar... Nesse dia, na fazenda Santa Cruz, o amanhecer surgiu com um sol forte e reinando absoluto no céu azul de anil no lugarejo. Podia-se ouvir os cantos de diferentes pássaros alegrando o dia, parecia até que havia uma festa, uma comemoração, uma celebração em andamento ou uma preparação para algo importante que estava para acontecer. Também se viam todas as criações de animais se movimentando, de um modo um tanto diferente naquele dia, no fundo do quintal. Compartilhando, dessa forma, com o canto dos pássaros aquela energia presente no recinto.

Contudo, aquele dia estava reservado para ser especial para aquela família. Dona Severina Beredine de Melo, uma senhora branca, filha de italianos, assim que acordou naquela manhã colocou a mão na barriga, já grande. Olhou para o seu marido Antônio Calixtro Rosa de Melo, negro descendente de escravos, encarregado da fazenda, e lhe disse com a certeza de quem vai ser mãe outra vez:

- Essa criança vai nascer hoje, não passa desse dia, é melhor você ir se preparando. Tô sentindo a barriga mexendo mais do que de costume. Eu sinto que é pra hoje!

- Tem certeza, mulher? Então, eu vou avisar a dona Maria, parteira do lugar, de que está chegando a hora.

Respondeu seu Antônio, querendo mostrar firmeza, disfarçando o nervosismo e a ansiedade pela proximidade da chegada de mais uma criança no lar. Na verdade, ele torcia para que dessa vez viesse uma menina, pois assim teriam oito filhos: cinco homens e três mulheres.

Assim, o dia transcorreu com essa expectativa, a chegada de mais uma criança. Durante todo dia, seu Antônio não tirou os olhos de dona Severina, cercando-a de todo cuidado.

Quando não estava de olho na mulher, seu Antônio caminhava pelo quintal, olhava para o céu e dirigia uma prece ao Senhor. Pedia silenciosamente para que Deus ajudasse quando chegasse a hora, que estive presente ou que enviasse um dos seus para ajudar no que fosse preciso, para que tudo corresse bem para os dois.

Toda vizinhança também acompanhava de perto todo movimento da casa porque queriam ver, assim que nascesse, a tão esperada criança. Diziam que ela era especial.

Quando a lua minguante surgiu no céu de Itapuí, dona Severina avisou seu Antônio pra ir correndo chamar a dona Maria porque era chegada a hora. Num instante seu Antônio partiu numa correria só para buscar a parteira. Não deu nem cinco minutos e os dois já estavam de volta, ofegantes, é verdade.

O parto transcorreu normalmente e as sete da noite daquele sábado, 29 de maio, veio ao mundo um menino ao contrário do que seu Antônio imaginava. Mesmo assim, a chegada daquela criança encheu ainda mais aquela casa de alegria e felicidade. Seu Antônio não se conteve e, emocionado, primeiro agradeceu a Deus por ter dado tudo certo. Depois chorou quando viu e colocou o menino no colo pela primeira vez.

Depois de tudo terminado a parteira contou para toda a vizinhança que nunca tinha visto o que ela viu quando aquela criança nasceu. E olha que ela já havia feito incontáveis partos no local e na região. Disse ela que, ao nascer, o menino parecia ter olhado para ela e lhe dado um sorriso como que agradecendo o que ela havia feito. E só depois ele chorou!

O menino foi batizado com o nome de Vicente de Melo, aquele que veio para vencer!

A preparação

O menino cresceu normalmente, sempre sob os olhares atentos dos pais e com os cuidados e a proteção de todos os irmãos mais velhos. Afinal, todo caçula tem esses privilégios na maioria das famílias e com ele não foi diferente. E, assim, ele foi crescendo. O fato de ele ter crescido na fazenda, despertou-lhe desde cedo um grande interesse por árvores frutíferas, plantas e animais, que são comuns nesses lugares. Mas o melhor ainda estava por vir.

Ainda criança, mas já no tempo de frequentar a escola, Vicente caminhava cerca de 10 quilômetros para chegar até o grupo escolar. Nessas caminhadas ele aprendeu a observar tudo ao seu redor: uma árvore, o canto de um pássaro e, principalmente, as pessoas que cruzavam seu caminho. Enquanto caminhava seus pés iam se enchendo de poeira. Então, quando chegavam para as aulas, ele e seus colegas tinham que lavar os pés em um tanque reservado para isso. Foram anos assim.

Terminado esse período de estudo, Vicente tinha 10 anos de idade. A família achou que precisava mudar de ares. Assim, os de Melo mudaram para Presidente Epitácio. Lá começaram a trabalhar no ramo da gastronomia, abriram o restaurante Calixtro que, aliás, até hoje funciona no centro da cidade.

Depois de terminado os estudos, Vicente se dividia em ajudar e aprender no restaurante, e um trabalho no escritório de uma serraria da cidade. Tudo correia perfeitamente bem nesses dois ambientes para o rapaz, agora com 18 anos. Mas, às vezes, ele sonhava e, em outras, ele sentia como se fosse uma voz do seu anjo da guarda ou do seu protetor espiritual, sabe-se lá, falando em seu ouvido:

- O seu lugar não é aqui, não foi para isso que você veio. Tem algo maior esperando e precisando de você longe daqui. É lá que você será feliz e fará muita gente mais feliz ainda. Você lidara com gente de todo tipo. Logo, logo começará essa sua nova jornada. Tenha fé e confie em mim porque estarei sempre com você te protegendo e te fortalecendo quando você precisar.

Esse tipo de pensamento deixava Vicente muito intrigado e ele se perguntava: mas que ideias são essas meu Deus, o que será que isso significa?

Na verdade, é porque tudo isso de alguma forma já estava sendo preparado por sua irmã, Clarice de Melo. Ela havia comprado um bar e pediu para que ele viesse ajudá-la. Sem pestanejar, Vicente fez as malas, despediu-se dos parentes, encheu seu coração de alegria e esperança e partiu numa manhã ensolarada para a sua nova jornada.

Chegando ao seu destino, na travessa Antônio Seresani esquina com a avenida Marechal Deodoro, aqui em Assis, de novo lhe vieram aqueles pensamentos dizendo dessa vez: "é aqui o seu lugar". A irmã lhe recebeu de braços abertos e, com sorriso no rosto, demonstrou toda a sua alegria. Depois do abraço e da emoção do reencontro dos irmãos, Vicente olhou para cima e leu o nome do bar: Café Alvorada! ´

Eis aí o significado dos sonhos e dos pensamentos que ele tinha!

A cidade prometida

Bem, isso tudo aconteceu em 1967, isso quer dizer, que esse ano o Café Alvorada completou 50 anos. Provavelmente ele seja um dos bares mais antigos de Assis. O bar não chega a ser diferente de outros bares. Afinal, todo bar tem a sua característica. Nesse caso, o bar carrega a imagem e a semelhança do dono.

Há cerca de 15 anos, Vicente promoveu uma reforma no ambiente. A partir daí houve uma mistura nos nomes, o Café Alvorada passou a ser conhecido por todos como o "Bar do Vicente". E, claro, sem perder o letreiro original na fachada. Como o bar é a cara do dono, o que impera por lá é a humildade, a simplicidade, a atenção, o carinho e tudo de bom que você possa imaginar do dono para com quem lá frequenta.

- Tudo isso para mim é muito legal, é o povo que vem aqui, eu sou do povo. Para mim não tem nem rico e nem pobre, nem branco e nem negro, não tem homem e nem mulher. Eu trato todos da mesma forma, do mesmo jeito e com o mesmo carinho. Isso é o que me importa, diz Vicente, acompanhado de um sorriso de satisfação.

Embora haja essa duplicidade nos nomes, intuitivamente o bar segue à risca o seu nome original "Alvorada", que para quem não sabe, entre outras coisas significa: canto das aves ao amanhecer; juventude, mocidade; madrugada. O bar só abre à noite, perto das dez, e tudo pode acontecer por lá.

O local é ponto de encontro de todos as tribos: professores e estudantes universitários, artistas, músicos, poetas, viajantes, além de ser um espaço reservado para diferentes manifestações culturais. A energia presente no bar contagia todos que ali chegam, é algo impossível de verbalizar. Seria como ganhar um olhar, um sorriso, um abraço carinhoso ou um presente de alguém que gosta de você!

- Conheço o Bar do Vicente há 15 anos. Vou até lá porque a acolhida é maravilhosa. Além disso, sempre tem um bom papo, gente boa e, com isso tudo flui naturalmente a noite toda. O diferencial de outros bares são as pessoas que ali frequentam, porque o bar oferece espaço e liberdade para nos presentear com as suas mais diferentes artes como, por exemplo, peças teatrais, shows e manifestações culturais como a do dia 31 de outubro, Dia do Saci, organizado pelo bloco o "O Saci tá Manco". Sobre a figura do Vicente só tenho a dizer que deixo minha gratidão, sempre um eterno anfitrião por sua paciência, sabedoria e humanidade para conosco nessa grande festa chamada vida, argumenta Osmar Raimundo Castilho.

Outro depoimento emocionante vem da psicóloga, Paula Carvalho Lauer, que diz o seguinte:

- Do que me lembro, comecei a frequentar o Bar do Vicente no primeiro ano de faculdade. Recordo que, quando criança eu imaginava os bares do Mercadão cheios de doidos, prostitutas e bêbados. Um pouco por causa da Maria do Mercado, uma mulher negra tida como doida que vivia nas ruas nos arredores do mercado, vestida com muitas cores, acessórios e maquiagem. Depois de crescida, me tornei uma dessas "doidas". O Vicente é iluminado! É sensível, afetivo, um artista, eu diria. Ele restaura instrumentos musicais, é um cozinheiro de mão cheia. Ele sabe receber as pessoas como ninguém. Aliás, acho que é dessa sua qualidade que nasce seu sucesso e do seu bar. Ele recebe bem porque gosta de gente, gente de todos os tipos. Ele gosta da diversidade. Ele tem o corpo fechado e o espírito aberto, livre...E essa é sua luz e é com ela que o Vicente nos ilumina todas as vezes que chegamos no bar. Ele nos olha com a alegria do encontro depois da saudade, nos olha como ser único que somos, nos olha como se estivesse ali apenas.

Depois do que você leu acima, se você ainda não conhece o Bar do Vicente, passa lá pra ver!

Por conta de tudo isso, esse é o nosso homenageado em 2017, com todos os méritos. Nós, da Comunidade Negra de Assis, nos curvamos e agradecemos pela significativa contribuição, que nos enche de orgulho.

Vicente de Melo, aquele que veio pra vencer, e venceu!

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