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A história do menino que queria ser lixeiro

Kallil Dib

  • 23/10/14
  • 12:00
  • Atualizado há 495 semanas

Todos os dias, às 18 horas, passava pela rua de terra daquele bairro afastado o Caminhão de Lixo, fazendo um barulho que se ouvia do outro lado da vila. A dona de casa saia correndo com as sacolas nas mãos, e colocava no portão da casa, ou na esquina da rua, aqueles sacos fedidos.

Dali a pouco passavam os homens em cima do caminhão, pegando tudo o que ali estava jogado.

Tinha um menino, menino pequeno de pernas magrelas e de sonhos de gente grande. Ele ficava encantado com todo aquele furdunço que no final da tarde se acontecia no bairro. Ficava cativado com aqueles homens em cima do caminhão, que detinham o poder de dez minutos depois das seis, deixar toda a rua limpinha.

Certo dia o moleque resolveu imitar os seus heróis da limpeza. Pegou duas almofadas, que mais pareciam com sacos de lixo; subiu no armário da sala, que mais parecia um caminhão, e fazia um barulho com a boca igual ao do motor daquele carro grande. Era a sua melhor brincadeira.

Enquanto fazia isso, a molecada vizinha batia bola na rua. Dois times formados, e os sem camisa foram campeões. Mas, brincar no caminhão de lixo era mais legal, muito mais interessante! E o menino, com toda sua inocência de criança, dizia a quem quisesse ouvir que aquela era a brincadeira de seus sonhos...

E o pior, ele não entendia o porquê tantas pessoas davam risada quando ele falava sobre suas pretensões. Afinal, ser lixeiro é tão digno: eles limpam, reciclam, e deixam qualquer cidade mais bonita. Mas, quando um amigo seu gritava que no futuro gostaria de ser jogador de futebol, os adultos todos aplaudiam. Não há de se entender!

Certa tarde, em um de seus jeitos de criança curiosa, conversou com aquele gari que limpava a rua de cima. E o garoto, que queria ser lixeiro, desistiu.

O homem de roupas reluzentes e boné na cabeça, que tinha o rosto cansado, com marcas do tempo, que tinha as mãos calejadas e o olhar despretensioso, mas que continha um sorriso mais brilhante do que o imensurável valor de sua profissão, disse boas verdades de realidade àquele menino.

Ele disse que depois de décadas e décadas de profissão, ainda não se acostumou com o preconceito. Não falou nada de sua cor. Mas, o preconceito das pessoas que não têm qualquer tipo de respeito com o ambiente onde vivem. Jogam na rua qualquer coisa. E pensam que a cidade é um imenso lixo.

O homem contou ao menino um pouco dos valores de sua profissão. E disse dos percalços e dos lixos humanos que se encontra no meio dos sacos pretos. Lembrou que trabalha para sustentar sua família, e que recebe pouco mais de um salário mínimo. Que enfrenta todos os dias a dura batalha de pegar do chão o papel de bala que o playboy jogou. E ainda ser avacalhado pelo motorista do carro da moda, que pede licença enquanto o gari limpa a rua que ele sujou.

E as ruas limpas iam ficando ainda mais limpas. Os lixeiros mudavam de rostos semanas em semanas. Os anos passavam. As ruas limpas iam sendo ainda mais limpas. Passaram as estações; as páginas do livro; as ilusões do garoto...

O menino não entendeu nada mais, ficou perplexo. Percebeu que as almofadas não eram sacos de lixos, e que o armário não fazia barulho nenhum. Alias, o garoto aprendeu mais do que isso: ficou sabendo desde cedo o tamanho da desigualdade desse mundo, e continuou a ver o jogador de bola receber milhões, enquanto o gari luta para sobreviver.

E então, foi viver outro sonho...

Kallil Dib - Jornalista

www.kallil.com

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