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Vagas lembranças do sol

José Benjamim

  • 28/09/15
  • 09:00
  • Atualizado há 447 semanas

Naquele tempo, quando o sol nascia, era como se também nascêssemos com ele, cuspidos pela noite de que não gostávamos, a noite de medo em que ficávamos sozinhos, rodeados de silêncio e receio, até que vinha o sono e morríamos para nascer de novo com a luz, aurora rompendo as trevas, anunciando o dia. E então, alegres e felizes, caminhávamos mais uma vez, refazendo o périplo do nascente ao poente, quando se fechava o círculo e de novo a noite vinha, medonha, separar-nos de nós, do sol, da claridade, da água e do verde.

Naquele tempo (você não se lembra, é claro que você não se lembra), havia o rio onde mergulhávamos a serenidade de estar ali (nossa grande façanha era atravessá-lo margem a margem) e havia os risos, nossos risos altos, nossa camaradagem sem consciência, nossas brincadeiras, imagens da inocência.

Acordávamos manhãzinha ver o sol nascer, e você gritava pulando feliz, a bola enorme subindo no céu. Ruminando, mansas e pacientes, nos esperavam as tetas das vacas, cheias de leite gordo. Gotas de orvalho salpicavam o capim onde passávamos, brilhando ao sol. E os pássaros entoavam seus gorjeios matinais. Não, você não se lembra daquele tempo, você criança, brincando feliz em meio a outras, crianças como nós. Você não se lembra; as luzes falsas da cidade, fogos-fátuos de ilusões, apagaram para sempre aquele tempo.

Quando era noite de lua cheia, sol sem brilho lutando contra as sombras, nos reuníamos, meninos e meninas em imensa roda, e rodávamos, cantando e rindo, rindo e cantando nossas cantigas ingênuas, até que desfazíamos o enlace e nos despedíamos com tristeza, engolfando na noite de breu do sono. Outras vezes ficávamos brincando de esconde-esconde ou de amarelinha, pula-pulando, correndo, gritando, como se o tempo não existisse, até que os gritos de nossas mães, hora de dormir, ecoavam forte nas sombras esvoaçantes da noite clara. Você não sabe mais daquele tempo, nem daquelas cantigas, sons perdidos na distância, jamais reencontrados.

Não sabe mais nem mesmo daquelas crianças com as quais brincava, figuras vagas, sombras projetadas de um tempo esquecido, seres que existiram um dia para você e que hoje são apenas hesitantes imagens teimando povoar sua mente. Também não se lembra mais da garotinha bonita, parceira das brincadeiras de roda, cuja aproximação fazia seu coração bater mais forte, sem que soubesse porque. Você não entendia bem o que se passava, sabia apenas que estar perto dela lhe dava uma imensa sensação de bem-estar, como se, estando ao seu lado, a própria existência se bastasse.

Escuta, escuta novamente aquelas vozes, aquelas cantigas. Dance de novo a dança de roda com aquelas figuras de sombra. Refaça os caminhos de tantas veredas que se abriam aos seus pés, dentro da mata em meio ao canto dos pássaros e a fuga apressada dos lagartos. Seu estilingue e embornal de mamonas escutando o silêncio. Seus passos pelas trilhas do gado. Escuta.

José Benjamim de Lima

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