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Caiu o saudoso Colégio Diocesano

Assisenses assistem à passagem do apagador por sua história

  • 09/04/15
  • 11:00
  • Atualizado há 468 semanas

Passei sete anos longe de Assis, minha cidade natal. Confesso que, racionalmente, não tinha muito apreço pela cidade. Era muito pouco ante à totalidade do mundo, e eram poucos os que se davam conta da pequena porção que representava.

Por outro lado, longe da razão, o coração, nostálgico que é, sempre trepidava quando certas imagens da pequena vinham à mente. Tantos e tantos por cento delas se passavam em um lugar: o Colégio Diocesano.

Por acaso do destino e para o bem do meu auto-entendimento, acabei voltando de São Paulo para morar num local cujo trajeto até o novo trabalho - sim, só pode ser brincadeira! - passa pelas mesmas ruas de quando ia da minha antiga casa até meu antigo colégio.

E é triste tê-lo como antigo. Mas como diz Saramago, "a alegoria chega quando descrever a realidade já não serve". Então imagine por aí um garoto que nada sabe do mundo, numa cidade que considera ser o mundo todo. Quinze anos depois esse mesmo garoto pega sua bicicleta - por sinal, a mesma de quinze anos atrás,e sai de casa mais uma vez para trabalhar, disposto a pedalar recordações para esquentar o começo do dia. Então passa pela rotatória, vê o Chicão, sobe a Dr. Dória. Algumas casas ali estão intactas desde aquela época.

Acaba a subida e começa um longo suspiro de alívio pelo esforço. Mas logo passa, e volta a suspirar duas quadras depois, quando passapelo velho Colégio Diocesano. O prédio está parte em ruínas, mas ainda cheio de referências físicas do edifício datado do meio do século passado e que formou milhares de assisenses desde então.

Uma simples parada ali me lembrava o gordinho que nunca era escolhido para o time de futebol, apesar de amar jogar bola, no parquinho do prezinho. O cheiro de massinha de modelar, as filas separadas em meninos e meninas (!), o salão de atos com ladrilhos de madeira, a Tia Milka, a Tia Graça e a Tia Andreia, a Tia Valquíria. Também a tia Lurdinha da limpeza e a tia mãe do Renan, de quem não recordo o nome.

Lembrei tambémda escada que ligava o primário ao pátio. "Pa, pa, pa, pa, pa!", faziam as mochilas com rodinhas que batiam nos degraus. Lá em cima estava a Tia Ana tocando violão para acordar a meninada do acantonamento. Também tinha a Tia Dora, a Dinorá, a Lurdinha, a Jandira, o Rodney, o Wilsão, o Serjão, representantes dos mandos da irada carinhosa Dona Isa.

Dali pra baixo eu fui feliz. O pátio com as mezinhas de azulejo sob duas grandes árvores, entre a saída da biblioteca, o "jardim de Versalhes", o caminho da cantina, e as quadras, ao fundo, com a piscina ao centro. Desgraçado do sinal, que batia tão rápido. Decretava o fim do recreio e mandava a meninada pra classe com um colar de suor no uniforme.

Pô, logo nessa época, quinta série, que a gente começava a olhar diferente para as garotinhas.

Mais algumas dezenas de passos por ali e é possível imaginar o palquinho das festas juninas, as primeiras bombinhas, a fila dos famigerados da cantina. As árvores cuja a lenda diocesânica dizia ser pé de cacau. Cadê todo mundo? Cadê eu? Queria é me lembrar de como eu era, como eu andava, falava, interagia, sentia...

Eis então que minha vontade de lembrar pudera ser saciada até ontem.

Hoje, pela manhã fria, que para afiar a nostalgia, é a primeira com cara de outono no ano, saí de casa de bicicleta, passei o Chicão, subi a Dr. Dória, suspirei de canseira e logo na sequência, ao fim da subida, passando a Casa Grande, eu fui é suspirar de verdade. Agora, de tristeza.

Os restos do Diocesano estavam sendo demolidos de vez.

Eu freei. Não só a bicicleta, mas freei o andamento da vida para não colocar nada em mente, na tentativa de fixar de vez todas as minhas lembranças naquele último adeus. À construção, e a uma parte de mim. Mas o freio não resistiu à chegada avassaladora da tristeza.

É que "cada tauba que caía, duia no coração".

E já que o Adoniran foi citado, porque não dar voz a ele pra entender que a falta de zelo com a memória do povo (aqui, especificamente da elite assisense) já vinha lá dos anos 50, e ainda dá às caras por aqui.

"Era uma casa veia, um palacete assobradado (ou mau assombrado?). Foi aqui, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca (também o Léo, o Neto, o Raul, o Martinez, o Carlinhos, a Pri, a Elô, a Mel, a Rê, a Carol, a Fer, a Clara, a Isabela - paixãozinha - e até o Luan Santtana!)construímos nossa maloca. Mas um dia, nóis nem pode se alembrá, veio os homicas ferramentas. O dono mandôderrubá."

Eu, ali, parado, e por mais uma triste ironia do destino ouvindo 'Saudosa Maloca', de Adoniran Barbosa, fiquei me perguntando: e se tivessem derrubado o Coliseu? Se tivessem passado o trator por cima de MachuPichu, da Estação da Luz, do Pelourinho? O que seria dessas histórias?

Sim, podemos comparar suas grandezas, já que cada lugar tem seu patrimônio relativo e inerente ao seu tempo e realidade.

E sigo me perguntando: Quão descolado do resto do mundo é o sujeito que não sabe valorizar essa história? É muito claro que essa demolição não parte de um pensamento contemporâneo, tampouco alinhado às novas tendências de mercado.

Após sete anos longe, parece que aqui somente agora se chegou à megalomania do progresso, dos grandes empreendimentos, mesmo que os empreendimentos megalomaníacos da cidade grande estejam repletos de pessoas querendo é voltar à simplicidade.

A verdadeira grandeza já estava ali, tradicionalmente edificada e identificada com a história de seu entorno. Agora, o nosso Coliseu foi demolido. O próximo passo é qual? A Santa Casa?O Santa Maria? E depois, quem vai contar essa história? Homem de lata mandou dizer que um povo sem memória é um povo sem história. Pensei.

Bom, voltando ao meu caminho rumo ao trabalho, para abstrair da minha incapacidade ante aum progresso cego e mal pensado, me restou, por fim, tentar voltar ao Saramago. Que me conforte: "Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória."

Guilherme Xavier Ribeiro é cineasta. Cursou Propaganda na USP, dirigiu os documentários 'Sabotage Nós' e 'Sobre Coragem!', foi web repórter e diretor de TV na MTV Brasil entre 2010 e 2013. Atualmente, é diretor de cinema na Red Studios.

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