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Salve, dona Bene!

COLUNISTA - Niva Miguel

Niva Miguel

  • 11/05/18
  • 08:00
  • Atualizado há 310 semanas

Em 1940, dona Chica, 27 anos, tinha uma pensão na rua Dona Santina, na Vila Rezende. Era viúva e com três filhos para criar, a mais velha era a Ditinha, com sete anos. No mesmo bairro, perto da igreja Imaculada Conceição, morava o seu Benedito, 30 anos, igualmente viúvo, também com três crianças para cuidar, o mais velho chamava-se Pedrinho, e tinha seis anos. De vez em quando, seu Benedito batia à porta da casa da dona Chica e tentava convencê-la a se casar com ele. A resposta era sempre a mesma. Não!

Ela pensava que não podia dar certo essa união. Afinal, dizia ela: "são três dele com mais três meus, são seis, com nós dois seriam oito bocas pra comer todos os dias e dar educação para seis crianças seria mais difícil ainda". Seu Benedito ouvia e respondia antes de partir: "sua ingrata". Com tantos nãos, ele nunca mais voltou.

A infância da Ditinha foi normal, cursava o primário, brincava de roda, amarelinha e não se lembra direito da morte do pai que morreu afogado. Só se recorda que, quando ele recebia o pagamento, sempre chegava a casa com balas e doces. Com 12 anos começou a ir para a igreja: fez o catecismo e sempre assistia missas, além da responsabilidade de levar as crianças da vizinhança para a igreja. A infância de Pedrinho também não foi diferente. Estudava e sua brincadeira favorita era jogar futebol; sonhava em ser jogador profissional.

Encontro marcado

Em fevereiro de 1951, Ditinha completou 18 anos, e começou a trabalhar na fábrica de tecidos Boyes. Pedrinho também trabalhava em uma marcenaria, que ficava no meio do caminho entre a casa dela e a fábrica.

Um belo dia, ela percebeu que toda vez que por ali passava tinha um negro com os traços bonitos, de lábios carnudos, com os olhos brilhando e um sorriso de felicidade no rosto, a observá-la de um vitrô. Como o olhar passou a ser correspondido, ele foi até ela e se apresentou: "Meu nome é Pedro, mas me chamam de Pedrinho".

Pela primeira vez na vida, Ditinha sentiu seu coração bater fora do compasso, suas pernas ficaram bambas, calafrios cobriram seu corpo, ao mesmo tempo que uma grande alegria invadiu todo o seu ser. Diante de tamanha felicidade e, ao contrário da sua mãe, dona Chica, ela disse sim! Começava ali o namoro entre Ditinha e Pedrinho.

- Quando eu ia trabalhar costumava levar bolo de fubá que minha mãe fazia, levava um pedaço para ele e outro para mim. Ele sempre ia me buscar na saída do trabalho e a gente vinha conversando, recorda.

Foram quatro anos de namoro até o casamento em 1955, na igreja Imaculada Conceição. Ditinha estava bela, formosa e se sentia a mais feliz das mulheres. Diante do padre e de suas palavras jurou amor eterno para Pedrinho, o filho do seu Benedito. Disse também que seria dele de corpo e alma por toda a sua vida.

Uma Nova Família

Seu Benedito construiu três quartinhos nos fundos da casa dele, no bairro São Dimas, e o casal foi morar lá. Em janeiro de 1956, eu nasci e recebi o nome de Oswaldo Miguel, dado pela dona Chica. Meu irmão Mauro Rafael Miguel, nasceu em agosto do ano seguinte. Foram cerca de cinco anos morando com o sogro, até decidirem que tinham que ter uma casa só pra eles.

Lembro-me que desde pequeno sempre vi minha mãe trabalhando muito. Às vezes me levava com ela. Ela trabalhava de empregada doméstica durante o dia e à noite lavava e passava roupas para as vizinhas ricas.

Além disso, costurava, fazia roupas, consertava e alisava os cabelos das mulheres negras que queriam tê-los lisos iguais aos das mulheres brancas. Sábado à tarde minha casa ficava cheia delas.

Cresci apegado a ela, sempre cuidou de mim com carinho, não deixava faltar nada e me enchia de mimos. Repreendia-me quando precisava e sempre dizia aquelas coisas que toda mãe diz para um filho vencer na vida. Por isso eu sempre a respeitei e admirei sua fibra.

De vez em quando presenciava uma briga entre eles. Meu pai gostava de bailar, jogar e ver futebol, e de um samba também. Isso, claro, dava confusão pela sua ausência, mas ela nunca disse uma palavra para nós se queixando. Quando brigavam, eu ficava do lado dela.

As brigas começaram a ficar constantes e, às vezes, eu ouvia coisas que não deviam ser ditas pra ninguém. Percebia uma tristeza muito grande nela e que a sua luz não mais reluzia como antigamente. Imaginava que ela pensava que o que havia jurado diante do padre há 20 anos não podia ser rompido, que aquele negro que encheu seu coração de alegria não podia partir. Mas, não teve jeito, um dia ele anunciou que iria embora. E foi!

Nunca tinha visto minha mãe chorar, entregue e fragilizada. Mesmo assim, ela não reclamou, não praguejou, não falou mal dele, só disse que precisávamos seguir em frente e que Deus iria nos ajudar.

Uma longa espera

Fomos pra casa da mãe dela e minha avó, dona Chica. Ela se apegou ainda mais ao trabalho. Trabalhava de empregada doméstica durante o dia e à noite de enfermeira; não sei como conseguia. Mesmo assim, ainda cuidava com esmero da sua mãe. O dinheiro que ganhava economizava para reformar a casa. Sempre quis ter junto com meu pai um lugar aconchegante, que fosse nosso. Mas não conseguiu!

Dizia sempre que nós tínhamos que vencer na vida, ser alguém. Quando entrei na faculdade, disse que me ajudaria no que fosse preciso. Lembro-me que em uma das vezes ela disse que não tinha dinheiro em casa para me ajudar, mas respondeu: "eu não tenho agora, mas amanhã eu vou sair e emprestar esse dinheiro; à noite você vai lá e paga. Você tem que terminar esse estudo, você tem que vencer".

No dia da minha formatura, no salão nobre da Unimep, lá estava ela toda orgulhosa e, na hora que anunciaram o meu nome, nós choramos de alegria. Ela, com certeza, estava se formando junto comigo.

O tempo foi passando e ela se aposentou, reformou a casa do seu jeito, cuidava ainda mais da mãe dela, não saia, não se divertia e a vida seguia seu rumo. Porém, notava que quando falava do meu pai algo mudava.

Mãe, eu vi meu pai hoje na rua.

- É, e como ele está, ele está bem?

Acho que sim, eu dizia, e sentia uma alegria brotar no seu rosto. Não sabia se isso era bom ou se era ruim. De vez em quando era ela quem me dizia: "vi o seu pai hoje na rua e ele virou a cara pra mim". Uma tristeza sem fim tomava conta dela. Também não sabia o que dizer naqueles momentos.

O tempo foi passando e, às vezes, conversávamos sobre esse assunto, sempre com as mesmas respostas. Em 2003, sua mãe, dona Chica, morreu com 93 anos. Certa do dever cumprido, ela não chorou. Entendeu que na vida é preciso fazer o que tem que ser feito. Trocou os cuidados com a mãe pelas orações, começou a participar ativamente de tudo que acontece com o pessoal da sua idade na igreja São Pedro. São viagens com o grupo de oração, visitas a doentes membros da igreja…

Um novo encontro

Em 2008, o tom da conversa sobre meu pai mudou. Mãe, dizia eu, meu pai está doente, ele vai ter de ser operado e vai precisar de uma enfermeira para cuidar dele. E ela respondia sem pestanejar: "se precisar e se ele quiser eu vou, não se pode abandonar ninguém nesse mundo". Não queria ser um cupido, eu pensava.

No começo ela ia até a casa dele, cuidava e voltava para a sua casa. Mas, não demorou muito e eles estavam morando juntos e casados novamente, depois de 35 anos um longe do outro. A partir daí, minha mãe era só felicidade. Um amigo me encontrou e disse: "vi sua mãe; nossa, ela está tão feliz, né". Uma outra amiga dela me disse também: "nossa, esse casamento fez bem para sua mãe, hein; a Ditinha anda numa felicidade que dá inveja na gente".

Foram dois anos dessa alegria. Em 2010, meu pai ficou doente e morreu ao lado dela no hospital. Quando cheguei, ela estava tranquila assim como na morte da sua mãe.

Hoje, com 85 anos, minha mãe mora na casa que era deles, do jeito que ela sempre quis e está feliz. Sempre estou por lá e, o que mais gosto, é quando chego, porque ela me dá um abraço daqueles e diz no meu ouvido: "estava com saudades de você".

Um dia desses estávamos falando sobre a vida. Depois de muita conversa, ela me olhou nos olhos, abriu um baita sorriso e falou:

- Meu filho, nós vencemos!

E com uma mãe assim, riqueza maior nesse mundo não há!

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