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Quando as paredes cantavam Beatles

COLUNISTA - José Benjamin

José Benjamim

  • 24/06/18
  • 13:00
  • Atualizado há 300 semanas

As gerações mais novas parecem não curtir muito a música dos Beatles. Preferem o som de bandas um pouco mais pesadas, na música e na letra. Mas nos anos 60 do século passado, éramos, os jovens de então, tocados a Beatles. Sua música estava por toda parte. Dos rádios, dos discos, das tvs, se irradiava para o mundo, atravessava paredes e muros.

Qual o jovem daquela época que não vibrou com "I want to hold your hands", "A hard day's

night", "All you need is love", "Stand by me", "Hello, goodbye", "With a little help from my

friends", "Come together", "And I love her", "Don't let me down", "Lucy in the sky with

diamonds", "A day in the life", "Across the universe", "Penny Lane", "Let it be" e tantas e

tantas mais?

As letras eram, na sua maioria, simples e otimistas. Não há nada que você não possa fazer, é

fácil, tudo o que você precisa é amar ("All you need is love"). Não carregue o mundo em seus

ombros, não faça isso pior ("Hey Jude"). Nada será capaz de mudar meu mundo ("Across the

universe"). Não me deixe pra baixo, é um amor que dura para sempre, é um amor que não

tem passado ("Don't let me down"). Com uma pequena ajuda dos amigos ("With a little help

from my friends") e a amada ao lado, tudo se resolvia: o medo se afastava e todos, alegremente, como Lucy, a garota com o sol nos olhos, podiam passear num céu com diamantes ou num rio com pés de tangerina e céus de marmelada.

Também, pudera! O mundo vivia um período único. Os países que mais sofreram os horrores

da segunda guerra mundial se recuperavam, alguns até com surpreendente rapidez. A

esquerda ainda era uma promessa, não obstante as revelações dos crimes do stalinismo. A

guerra fria era ruim, mas o medo da guerra atômica, paradoxalmente, era uma garantia de

paz. O "odiado" imperialismo americano levava uma sova no Vietnã. Tio Sam capitalista

parecia estar com os dias contados. Havia muita esperança no mundo. As corporações ainda

não eram tão grandes, tão impessoais, tão apátridas como são hoje. E não pareciam tão

predatórias. O crime não estava tão organizado, globalizado e disseminado. Não se imaginava

naquela época que ele pudesse fortalecer-se tanto, minar quase todas as estruturas sociais e

colocar em risco a própria democracia e governos. A pós-verdade não era sequer imaginada e

as "fake-news" não tinham a força que têm hoje.

No Brasil, acabávamos de passar pelo desenvolvimentismo otimista de Juscelino, pela

inauguração de Brasília, pela crise da renúncia de Jânio e a tomada do poder pelos militares no

meio do tumultuado governo do vice João Goulart. Mas apesar das crises políticas e do golpe

militar, Caetano Veloso, magérrimo, seguia em frente, sem lenço, nem documento, o Rio de

Janeiro continuava lindo com Gilberto Gil, e Tim Maia recém chegava dos Estados Unidos para

lembrar-nos que era "Primavera", amor. Jorge Ben, por sua vez, cantava "Mas que nada", o

samba está animado, Chico Buarque nos convidava a ver a banda passar, enquanto Tom Jobim

e Vinicius musicavam a Garota de Ipanema e João Gilberto tocava seu Samba de uma Nota Só.

Só um pouco mais tarde o regime militar brasileiro realmente endureceu, enquanto o resto do

mundo também perdia o rumo. E aquele breve período solar, de leveza, alegria e esperança,

ritmado a Beatles e Bossa Nova, começou a escurecer e silenciar. Um novo espírito do tempo

dava os primeiros sinais. O mundo, tal como minha geração conheceu, começou a se

desconstruir, e nem se imagina no que se tornará. Talvez até fique melhor. Quem sabe? Mas

até lá, a incerteza e o medo serão os companheiros de viagem a nos assombrar.

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