Buscar no site

Crônica de uma travessia

COLUNISTA - Por José Benjamim de Lima

José Benjamim

  • 08/07/18
  • 12:00
  • Atualizado há 301 semanas

*José Benjamim de Lima

Enquanto dirijo, ponho-me a ouvir Autumn Leaves, no belo arranjo que Eric Clapton gravou em um de seus últimos CDs. Nunca imaginei que uma música tão executada fosse ainda suscetível de interpretação tão inspirada. Para continuar a ouvi-la indefinidamente, cuido de acionar o dispositivo que permite repetir automaticamente a mesma faixa...Só podia mesmo ser Eric Clapton! "As folhas de outono//De vermelho e ouro... (The autumn leaves//Of red and gold....)". Sob o influxo da batida lenta e difusamente melancólica, associada ao frio de inverno, lembranças e imagens me acorrem à mente...

"Os dias tão compridos (The days grow long)...". O inverno tem dias curtos, mas favorece as lembranças, mais que as outras estações. O frio obriga ao recolhimento do corpo, que se protege e se aperta nas blusas e japonas, enquanto a mente, pouco atraída pelo entorno empobrecido, tende a encolher-se dentro de si mesma e dilatar-se rumo ao passado.

Sou obrigado, entretanto, a interromper as imagens e lembranças que me acometem sob o influxo da música e do frio, porque, atento ao trânsito, percebo a aproximação de uma faixa de pedestres, exigindo redobrada atenção. Vejo que uma senhora aguarda momento propício para a travessia. Paro o carro e faço-lhe sinal, dando prioridade de passagem. Ela sorri e acena com a mão, agradecendo, como se meu gesto fosse uma deferência. Verifico que tem algum problema na perna esquerda, que parece ser mais curta do que a outra. Atravessa a avenida claudicando um pouco, arrastando o membro imperfeito, mas segue alegre e feliz, bem resolvida, cabeça erguida e tórax levantado, como se naquela simples travessia estivesse afirmando toda a sua humanidade.

Imediatamente vem-me à cabeça a perplexidade machadiana que acometeu Brás Cubas: "Por que bonita, se coxa; por que coxa, se bonita?" Por que a deficiência física, se tão simpática e digna? - me pergunto, ressoando o bruxo do Cosme Velho. O destino nos sorteia ao acaso, na distribuição de seus males e benesses. O importante, dizem, é não se deixar abater pela parte que nos toca de mal. Mas quem consegue? Sob os azares do destino, a tendência humana é reagir com revolta e mágoa. Por que eu? Sem resposta racional para o acaso que nos castiga, reagimos pondo a culpa nos outros, ou castigando ainda mais a nós mesmos, carregando em desespero nossas supostas culpas e nosso autorressentimento. Não parece ser o caso daquela senhora, que aparentemente conseguiu superar bem o mau destino.

Sorridente, a mulher conclui a travessia e vai-se distanciando no lusco-fusco da tarde. Eric Clapton continua a cantar: "Quando as folhas do outono//Começam a cair... (When autumn leaves/ Start to fall...)". Retomo o percurso, soltando o freio e acelerando o carro. A nostalgia da música mistura-se, em meu cérebro, à imagem daquela senhora que parece ter tirado de letra seu infortúnio. Seu semblante a um só tempo altivo e sereno soa-me como uma lição que me ajuda a afugentar as sensações difusamente cinzas, trazidas pela canção dolente e o frio do inverno. ([email protected])

Receba nossas notícias em primeira mão!

Veja também
Mais lidas
Ver todas as notícias locais