Palavras e ações
COLUNISTA - José Benjamim de Lima
Um dos ideais da educação grega na antiguidade era a formação do homem para a cidadania,
entendendo-se por isso especialmente a efetiva participação no governo da cidade. Preparar o
cidadão para "proferir palavras e realizar ações", conforme está dito na Ilíada, era a grande
meta. O domínio da palavra, compreendendo tanto a capacidade de argumentação e convencimento (o envolvimento pela razão), quanto a retórica (o envolvimento pela emoção),
pouco efeito teria se não se fizesse acompanhar da capacidade de transformar as palavras em
ações.
Daí, o duplo ideal contido na Paideia grega, buscando uma educação que associasse o pensar e
o fazer, não concebendo aquele sem este. Bem mais próximo de nós, o grande sermonista
Padre Vieira, dizia, com a verve que o caracteriza, "palavras sem ações são tiros sem bala;
ecoam, mas não ferem".
As palavras, por si só, já têm alguma dimensão no mundo do agir. O filósofo Merleau-Ponty
lembra que "se [....> toda ação é simbólica, então os livros são, à sua maneira, ações". Mas o
efeito de ação das palavras, consideradas intrinsecamente, é bastante limitado na grande
maioria das situações.
Ainda hoje os ideais da educação grega continuam válidos, observando-se, apenas, que no
mundo moderno, palavras e ações têm uma tendência lastimável para viverem cada vez mais
dissociadas: o que se fala geralmente não se faz e do que se faz nem sempre se fala, por se
tratar de coisa inconfessável.
Esse desacordo quase rotineiro entre palavras e ações talvez seja uma das mais graves
patologias da vida moderna, principalmente no mundo da política (basta ter em mente os
discursos político-eleitorais e as ações concretas de governo passadas as eleições).
Desonestidade e falsidade não são novidade no mundo político. A novidade, própria dos
tempos atuais, segundo Matthew D'Ancona, jornalista britânico, "é a resposta do público em
relação a isso. A indignação dá lugar à indiferença e, finalmente, à conivência. A mentira é
considerada a regra, e não a exceção" ("Pós-Verdade - A Nova Guerra contra os Fatos em
Tempos de Fake News).
Não é somente no discurso político que palavras e ações estão quase sempre em desacordo.
Na publicidade comercial também se constata essa dissonância; aliás, ela vive desse
desalinhamento, desse descompasso permanente entre o ilusório e o real, entre a promessa
que faz e o que efetivamente nos dá. Mas a publicidade comercial tem menos potencial
danoso. É quase uma convenção de autoengano expresso. Aqui funciona mais, de parte a
parte, um certo cinismo simpático, consciente ou subliminar. O autoengano consentido e
explícito do me engana que eu gosto, é a contrapartida da criatividade cínica de quem
explicitamente só quer vender.
No discurso político, a dissonância entre palavras e ações é bem mais grave, pois abala toda a
coletividade, especialmente nos seus valores essenciais, verdade, integridade, honestidade. É
uma perda civilizatória considerável. Urge que todos tenhamos em mente a advertência de
George Steiner, no livro "Linguagem e Silêncio": "A menos que consigamos restaurar alguma
medida de claridade e rigor no sentido das palavras, na mídia, nas leis e na ação política, as
nossas vidas estarão cada vez mais perto do caos. Virá então uma nova era de obscuridade."
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