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O Direito de Sonhar

COLUNISTA - José Benjamim de Lima

José Benjamim

  • 08/06/20
  • 18:00
  • Atualizado há 202 semanas

"A vida é insuportável para quem não tem sempre à mão um entusiasmo."

Maurke Barres

Um dos direitos fundamentais do homem, não expressamente reconhecido e jamais claramente proclamado pelas declarações de direitos, nem pelas Constituições modernas, é o direito de sonhar. Talvez não o tenha sido porque é direito de tal forma inerente à natureza humana e tão evidente, que nunca se viu necessidade de sua solene afirmação por documentos políticos.

Não me refiro ao sonho do sono, mascarado prêmio consolação de nossos desejos não realizados ou expressão cifrada de nossos recônditos e inconfessáveis monstros interiores, muito embora os sonhos do sono tenham sido, muitas vezes, antecipatórios de muitas descobertas. Nem do sonho romântico se trata, forma de escape da realidade. É no sonho vigília que penso. O sonhar acordado. O sonho como imaginação criadora, instrumento de mudança, de transformação, de enriquecimento pessoal ou social, alavanca para se exigir, dando e recebendo, sempre mais do mundo real.

A vida não é puro sonho, não é uma mera ilusão, como queriam os artistas barrocos, e como querem os discípulos de Platão de todas as épocas. Não é, com certeza, um simulacro imperfeito do mundo ideal. Mas os sonhos e seu potencial motivador e transformador devem ser encarados não como ilusões, não como parte de um mundo paralelo, mas como parte substancial da vida. "O sonhador e seu devaneio - diz-nos o filósofo-poeta Gaston Bachelard - entram de corpo e alma na substância da felicidade". E, mais adiante, em seu livro "A Poética do Devaneio" indaga: "Que outra liberdade psicológica possuímos, afora a liberdade de sonhar? Psicologicamente falando, é no devaneio que somos seres livres".

Sonhar lucidamente o ideal, o surreal, o temerário, o impossível, não é negar a realidade, é tentar expandi-la e compreendê-la para além das convenções e preconceitos. O sonho é a antecipação do real. Querer o que ainda não existe, mesmo no plano do desejo imaginado e sonhado, é dar os primeiros passos na sua busca. Já na antiga Grécia, Dédalo e Ícaro sonharam com o voo humano. Demorou séculos, mas deste sonho surgiu o avião. Leonardo da Vinci imaginou tantos artefatos humanos que, depois, se tornaram realidade... O cientista Leonard Mlodinow (De primatas a astronautas) lembra: "De certa forma, o avanço do conhecimento humano foi possível com uma sucessão de fantasias [....>, todas imaginadas por alguém capaz de olhar o mundo de um jeito diferente."

O sonho de consumo dos ditadores e dos regimes autoritários sempre foi o controle ou apagamento do direito de sonhar. O delírio do pensamento único, da uniformidade, da vida enclausurada em dogmas, na mentira, na meia verdade, no autoengano. O delírio do uniforme... Mas nenhum ditador conseguiu, definitivamente, derrotar a liberdade de sonhar. Sempre haverá, como diz a poesia de Carlos Drummond de Andrade, uma flor nascendo na rua, furando o asfalto, o nojo, o tédio e o ódio.

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